
O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) divulgou, na noite de ontem, 19 de fevereiro de 2025, o Relatório Final sobre a queda do avião King Air de um sócio da Raízen, ocorrida em 2021. o5x6u
A aeronave Beechcraft King Air B200GT pertencia a um dos sócios da Raízen, empresa responsável pela produção e operação dos combustíveis da holandesa Shell, além das lojas Shell Select e Oxxo.
Na manhã do acidente, ocorrido em 14 de setembro de 2021, em Piracicaba, São Paulo, a aeronave de matrícula PS-CSM, adquirida em 2019 e com aproximadamente 268 horas de voo, caiu logo após a decolagem.
O CENIPA constatou que o acidente foi resultado de vários fatores, que combinavam pressões operacionais, falhas na manutenção e lacunas no treinamento da tripulação. A bordo, encontrava-se o dono da aeronave, o empresário Celso Silveira Mello Filho – acionista da usina Raízen Cosan – acompanhado de sua esposa e três filhos, além do piloto e do copiloto.
Histórico e Desafios na Manutenção
A aeronave, utilizada para transportar ageiros até a Fazenda Tarumã, no interior do Pará, ou por diversas intervenções logo após sua nacionalização, já que foi adquirida usada nos EUA. Durante uma inspeção de 50 horas, foi constatado um aumento anormal de RPM no sistema de embandeiramento, o que desencadeou as primeiras intervenções, especialmente na manutenção das hélices.
Poucos meses antes do acidente, a identificação de dois parafusos de lubrificação quebrados na hélice esquerda obrigou sua remoção e reparo em uma Organização de Manutenção (OM) certificada. A elevada cobrança dos custos e as divergências nos registros técnicos – com rasuras e inconsistências nas anotações – apontaram para falhas na verificação dos serviços realizados, possivelmente agravadas pelo adiantamento da liberação da aeronave, pressionada pelo proprietário para cumprir compromissos.
Pressões Operacionais e Ajustes Críticos
A antecipação da entrega, originalmente prevista para 15 de setembro de 2021, forçou a realização de ajustes técnicos de maneira apressada. Entre esses ajustes, destaca-se a elevação do limite de rotação de 1.950 para 1.990 RPM.
Durante uma decolagem anterior em Jundiaí, a aeronave, operando mais leve, exigiu menor potência, não apresentando nenhuma anormalidade. Entretanto, a condição em Piracicaba foi de sobrepeso – 1.374 lb (623,24 kg) acima do Peso Máximo de Decolagem (PMD) estipulado em 12.500 lb – inviabilizando o planejamento preciso dos parâmetros operacionais e contribuindo para o surgimento de alarmes críticos.
Decisões e Dinâmica do Voo
No voo que culminou no acidente, após o recolhimento do trem de pouso, o piloto em comando (PIC) efetuou um comando de redução da potência, que precedeu um aviso de estol. Registros de áudio da Caixa Preta (CVR) revelaram que o 2P – o segundo piloto, designado para auxiliar durante a decolagem – repetidamente sugeriu a aplicação de comandos corretivos, utilizando inclusive o termo “push”. Contudo, o PIC concentrou-se no suposto excesso de RPM, desconsiderando a gradual redução da velocidade e os sinais de pré-estol, indicados por um alarme contínuo.
Além disso, a operação acima do peso, fruto da crença entre alguns operadores de que a aeronave King Air poderia decolar mesmo excedendo os limites estabelecidos, contribuiu para que o voo fosse realizado em condições perigosas.
Lacunas no Treinamento e na Cultura Operacional
A aeronave estava enquadrada como “Classe MLTE” (Classe Multimotor Terrestre), conforme as novas instruções da IS nº 61-004G, o que dispensava treinamento específico para o modelo, desde que o piloto mantivesse a habilitação MLTE válida.
Até dezembro de 2020, o PIC operou o PS-CSM na condição de “single pilot”, e a inclusão posterior de um segundo piloto visava aumentar a segurança. No entanto, períodos prolongados sem voar e a baixa frequência de operações antes da manutenção contribuíram para uma autoavaliação negativa do desempenho da tripulação.
Ademais, a flexibilização dos requisitos de treinamento pode ter limitado a proficiência dos pilotos em lidar com emergências específicas do modelo B200GT, prejudicando a capacidade de reconhecimento e reação diante de condições críticas.
Fatores Contribuintes Identificado
Conforme a seção de conclusão final do relatório, as influências dos fatores contribuintes para o acidente foram analisadas da seguinte forma:
Aplicação dos Comandos – Indeterminado:
Após o recolhimento do trem de pouso, ocorreu um comando de redução da potência da aeronave pelo PIC, que precedeu o aviso de estol. Depois desse aviso, um possível comando para embandeirar a hélice pode ter iniciado a perda de controle da aeronave.
Atenção – Contribuiu:
A análise do desempenho dos pilotos no voo do dia anterior evidenciou episódios de desatenção, como no abaixamento do trem de pouso. No voo da ocorrência, a tripulação fixou-se no excesso de RPM, não percebendo a redução gradual da velocidade, o que limitou a reação tempestiva à condição de estol.
Atitude – Contribuiu:
No voo da ocorrência, foi utilizada a velocidade de 102 nós para a rotação – velocidade adequada ao PMD. Contudo, devido ao sobrepeso de 1.374 lb, essa decisão ocasionou um alarme contínuo, indicando que a aeronave transitou pela condição de pré-estol. Essa improvisação em relação ao peso agravou a situação.
Capacitação e Treinamento – Indeterminado:
O enquadramento da aeronave como “Classe” pela Agência Reguladora Brasileira pode ter contribuído para que o treinamento exigido dos pilotos não fosse suficiente para garantir a proficiência em condições de emergência na aeronave B200GT.
Cultura do Grupo de Trabalho – Indeterminado:
Relatos indicaram a crença disseminada de que a aeronave King Air era capaz de decolar mesmo com peso superior ao especificado, o que possivelmente influenciou a decisão de operar em condições inadequadas.
Julgamento de Pilotagem – Contribuiu:
A decolagem ocorreu com a aeronave 1.374 lb acima do limite previsto, utilizando parâmetros típicos de uma operação normal e reduzindo a potência pouco após o recolhimento do trem, sem a devida avaliação dos parâmetros de voo – culminando na condição de estol.
Manutenção da Aeronave – Indeterminado:
Embora o excesso de N2 (25 RPM acima do valor de decolagem e máximo contínuo) não possa ser diretamente relacionado aos ajustes efetuados nas hélices, o adiantamento da liberação pode ter comprometido uma verificação minuciosa das tarefas executadas, conforme evidenciado por rasuras e divergências nos registros.
Memória – Indeterminado:
A análise do espectro sonoro do CVR constatou que as hélices foram ajustadas após o callout de “disparo de hélice” feito pelo PIC. Esse procedimento, não previsto para o B200GT, mas praticado na aeronave E110 – onde o PIC possuía ampla experiência – pode ter se originado de uma “transferência negativa” de condicionamentos anteriores na memória do piloto.
Percepção – Contribuiu:
A condição de estol, provavelmente decorrente da redução gradual da velocidade após a diminuição das manetes de potência, não foi percebida a tempo para que medidas corretivas fossem adotadas. A percepção isolada do ligeiro excesso de RPM (25 RPM acima do limite) prejudicou a consciência situacional dos pilotos quanto aos demais parâmetros críticos do voo.
Conclusões da Investigação
A investigação do CENIPA aponta que o acidente resultou da convergência de múltiplos fatores: execução apressada de comandos e desatenção a sinais críticos (como a condição de pré-estol), pressão para antecipar a entrega da aeronave, operar acima dos limites de peso, bem como lacunas no treinamento específico para emergências.
Além disso, uma cultura de risco, que aceitava a operação em condições acima dos parâmetros recomendados, contribuiu para que decisões inadequadas fossem tomadas durante fases críticas do voo.
O relatório reforça a necessidade de rigor absoluto nos processos de manutenção e na execução dos cheques operacionais, bem como de um treinamento contínuo e específico para emergências. Apenas através do alinhamento entre práticas técnicas, operacionais e culturais será possível garantir a segurança e a eficácia das operações aéreas, prevenindo que pressões comerciais e decisões equivocadas comprometam a integridade dos voos.
O relatório final e na íntegra em português brasileiro está disponível clicando aqui e em inglês americano clicando aqui.